Resenha de cinema: “Uma história de amor e fúria” é nossa história de amor e fúria

Por Alessandra Verch.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO É UMA RESENHA CRÍTICA E CONTÉM SPOILERS]

Viver sem conhecer o passado é andar no escuro”, esse é o mote do longa-metragem de animação Uma história de amor e fúria. A animação, escrita e dirigida por Luiz Bolognesi, narra a história de um herói imortal que está vivo há mais de 600 anos. Devido a idade, o herói presencia diversos momentos marcantes e trágicos da história brasileira. A centelha de vida do protagonista é sua paixão por Janaína e o que o faz continuar sua jornada é a vontade de reencontrar seu amor.

O longa está dividido em 4 momentos. No primeiro, temos a colonização abordada sob a perspectiva nada romântica dos “perdedores”, os povos indígenas. A frustrante colonização francesa, a violência e o poderio português são mostrados em toda sua crueldade. Aqui, nosso herói é o tupinambá Abeguar que luta bravamente para proteger seu povo. Mas é em vão, Abeguar não consegue evitar a dizimação de sua tribo. Os colonizadores portugueses matam todas as pessoas de sua aldeia. Massacres, violências e extermínios não são suprimidos da narrativa. É a primeira vez que nosso herói perde sua paixão. Janaína é morta por portugueses, assim como seus filhos e sua comunidade.

Uma História de Amor e Fúria, de Luiz Bolognesi_2

O herói, em um recurso narrativo comovente utilizado por Bolognesi, transforma-se, então, em uma ave e voa sem parar, desaparecendo daquele local terrível a fim de esquecer aquela experiência dolorosa. Aterriza no Maranhão, em 1838. É o período escravocrata e nosso herói, agora, é o negro Manuel do Balaio, um negro não escravo. A imortalidade acaba se tornando uma pecha para o herói, pois o obriga a presenciar, uma vez mais, situações de dor e violências. Novamente, ele não consegue assistir a tudo de forma passiva e apática. Manuel do Balaio transforma-se no líder da Revolta da Balaiada, instigando toda a população da cidade a lutar pela sua vida e dignidade. Os revoltosos ganham a primeira batalha libertando a cidade, mas perdem a guerra. “Dizem que quem nasceu em liberdade não sobrevive ao cativeiro”, comenta o herói.

Uma História de Amor e Fúria, de Luiz Bolognesi_1

Balaio voa, novamente, até chegar aos anos 60 do século XX, período que vige a ditadura militar brasileira. Agora ele é Cao, um estudante guerrilheiro que luta contra a ditadura. Janaína é sua companheira de luta. Cao é preso e ao sair da cadeia junta-se ao presos comuns e vai morar na favela ensinando em uma escola popular. Nosso herói imortal enxerga nesses novos amigos os verdadeiros revolucionários. Sempre escolhe o lado mais fraco, reflete o personagem.

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Na última parte do filme, o Rio de Janeiro de 2096 é retratado. Vive-se uma época assolada pela luta por água potável. A população pobre habita as zonas baixas, sobre as águas poluídas, ao contrário da população rica, que vive em prédios suntuosos nas zonas mais altas da cidade. Nosso protagonista imortal agora é João Cândido um renomado jornalista que já está cansado de lutar. Janaína é uma prostituta, João é seu cliente. No entanto, mais uma vez João se vê lutando do lado mais fraco, é uma sina que o acompanha.

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Uma história de amor e fúria é o resultado de duas paixões do seu roteirista e diretor, Luiz Bolognesi: história em quadrinhos e história do Brasil. Bolognesi declarou que sua inspiração veio dos gibis adultos, de autores como Frank Miller, Moebius e em animações como a canadense “Heavy Metal”, de 1981.

Para construir os cenários e os personagens, a animação exigiu muita pesquisa e tempo, foram 6 anos desde a fase de pesquisa até a finalização. O resultado é uma surpreendente animação que comove exatamente por fugir da tendência atual, altamente tecnológica com utilização de 3D. Para a realização do longa, foram utilizadas técnicas de animação clássicas. Os personagens do filme foram desenhados e animados com lápis sobre papel, utilizando como referência as emoções oferecidas pelas atuações dos atores no estúdio de dublagem. A animação clássica é revisitada com um conteúdo instigante.

Uma história de amor e fúria é a história de amor e de ódio que marca a nossa relação dúbia com o país. Uma relação que vai da angústia à revolta, passando também pela apatia e indiferença. No longa esses sentimentos são ilustrados de forma criativa em épocas distintas.

Muito embora por vezes pareça que os episódios são encerrados de forma abrupta, o filme consegue conectar de forma convincente tempos longínquos da história do Brasil a um passado recente e a um futuro incerto. As disputas pelo poder e pelos recursos necessários para a sobrevivência, sejam eles materiais ou simbólicos (dinheiro ou dignidade) são o que une diferentes populações que habitaram o mesmo território.

A perspectiva da narrativa é sempre a dos perdedores, o que fez alguns críticos o julgarem maniqueísta por retratarem o povo sempre como vítima e o Estado sempre como opressor. Mas a escolha é uma escolha legítima que é constantemente informada no filme. Não se trata de maniqueísmo, pois em se tratando de história temos versões, e não verdades. Acreditar que exista uma história mais verdadeira e fiel que outra é ingenuidade. Temos em Uma história de amor e fúria uma ficção animada que escolhe de forma esclarecida se inspirar livremente na perspectiva histórica dos perdedores, ou melhor, dos submetidos às mais vis opressões, ou seja, dos índios, dos escravos, dos pobres e de todos aqueles que ainda anseiam por liberdade e respeito. Consta também na animação um devaneio futurista baseado problemas latentes, a escassez da água e o movimento de especulação imobiliária dos morros cariocas. “Meus heróis nunca viraram estátua, morreram lutando contra quem virou”, declara nosso herói imortal.

Uma história de amor e fúria é um filme que precisa ser visto.

Uma curiosidade: nos quatro episódios, a diretora de arte do filme, Anna Caiado, se referenciou nos quatro elementos da natureza (ar, fogo, terra e água) e nas quatro estações do ano. No primeiro episódio, da colonização, o elemento escolhido foi o ar, a finalidade era transmitir leveza e naturalidade (Abeguar e Janaína flutuam no ar), e a estação é a primavera, a justificativa está na ingenuidade dos personagens, pois eles ainda não sabem a crueldade que os aguarda. No segundo episódio, da escravidão, o elemento é o fogo. O sol nas plantações está sempre em evidência, as cores predominantes são o amarelo e o vermelho. Por óbvio, a estação é o verão, que é acompanhada pelo amadurecimento dos personagens. No terceiro momento, prevalecem as cenas urbanas sob um contexto de ditadura militar e guerrilha urbana. O outono é a estação, as cores utilizadas são frias e o elemento é a terra. Por fim, no último episódio, a disputa da água é o mote e o elemento não poderia ser outro, a água. Prevalecem os tons azuis, impera a desesperança. A estação é o inverno.

Para quem ainda não viu, dá uma olhada no trailer e corre para ver:

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Alessandra G. Fagundes Verch

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6 comentários

  1. achei o filme muito interessante os efeitos especiais e a história está muito bem elaborada, ainda mas pelo fato de ser um desenho muito embora e muitas cenas pareci até ser real, além da riqueza cultural e histórica que o autor buscou passar, e conseguiu! Parabéns e indico assistam UMA HISTÓRIA DE AMOR E FÚRIA. O mas interessante do filme é que ele mostra o que aconteceu no passado e o que podemos ainda passar no futuro, mostrando sempre que não importa o século ou o ano que vivemos ou iremos viver sempre haver corruptos tentando tirar o pouco dos pobres.

  2. Olá!

    Sou Adriana da Pousada Clariô em Bertioga. Assisti o filme ontem, pela televisão.
    Gostei muito. E,desde os Tupinambás a gente deste lugar luta por Terra Viva, Mata Atlântica preservada e água limpa.
    Nem chegamos em 2096 e a projeção, apresentada no filme, já é realidade em Bertioga. Foi aprovado um grande empreendimento, da SABESP, no rio Itapanhau, sendo que existem tantas outras formas de se solucionar a escassez de água da metrópole.
    Os heróis caiçaras e o rio Itapanhau estão em agonia. Socorro!!!

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